segunda-feira, 3 de abril de 2023

REGIMES, ORDENS E SISTEMAS ALIMENTARES

Diamantino Pereira

A extrema integração dos processos produtivos em todos os setores tem impulsionado a proposição de escalas de análise que apresentem a competência de lidar com esses sistemas integrados ao mesmo tempo em que deem conta das dinâmicas setoriais. É o que acontece, por exemplo, com a produção agropecuária e, em seu âmbito, a produção de alimentos que não pode ser explicada apenas na esfera da produção uma vez que fatores a montante a jusante são elementos importantes na estruturação da dinâmica do real e, portanto, de sua explicação.

A emergência dos estudos sobre os sistemas alimentares tem estreita ligação com essa lógica e tem sido objeto de propostas de diversos autores. Um desses autores, por exemplo, afirma que “um sistema alimentar é a forma como as pessoas se organizam no espaço e no tempo para obter e consumir seus alimentos” (MALASSIS, 1994, apud RASTOIN, J. L. 2014). Em outras palavras trata-se de um conjunto interdependente de sujeitos organizados no sentido de suprir a demanda de alimentos para a população (RASTOIN e GHERSI, 2010). Entretanto, tem sido a proposta de “regimes aliemntares” a que tem conseguido mais atenção, tanto em seu desenvolvimento quanto em críticas às suas possíveis limitações.

A proposição de análise baseada no conceito dos “regimes alimentares” foi consignada no texto de 1989 (FRIEDMANN e MCMICHAEL, 1989) onde, baseados na concepção do “Sistema Mundo” (WALLERSTEIN, 1999) e na “Escola da Regulação”[1] articulam os princpios de análise dos sistemas alimentares relacionados com os processos dominantes do processo de acumulação do capital em diferentes temporalidades. A proposta dos regimes alimentares não reconhece a prosução de alimentos com uma dinâmica específica mas fundamentalmente como um método de análise dos fundamentos dos sistemas agroalimentares de períodos relacionados com as tendências conjunturais do capitalismo. Assim definido, teriam existido dois regimes no passado, sendo o primeiro, de 1870 a 1914, ancorado na hegemonia britânica e o segundo, de 1945 a1973 no período hegemônico dos EUA.

Friedmann indica a emergência de um terceiro regime (FRIEDMANN, 2005) em que as preocupações ambientais estariam presentes e que seria então o terceiro regime alimentar que apresentaria um perfil corporativo-ambiental. Friedmann ficou sozinha nessa proposição pois Mc Michael publica artigo no mesmo ano em que não adere à ideia do “capitalismo verde” e define que esse terceiro regime seria denominado como o regime alimentar corporativo global que teria se cristalizado desde a década de 1980 e corresponderia ao período atual de fundo neoliberal, onde o protagonismo de Estado vai sendo progressivamente hegemonizado pelas grandes corporações e que poderia ser reconhecido por suas conformações dominantes de transnacionalização, supermercadização, financeirização, apropriação da terra e dos recursos naturais (MCMICHAEL, 2005).

Esse modelo de análise tem sofrido vária críticas, apontando sobretudo a perspectiva de que se trata de um foco generalizante que não daria conta da grande diversidade dos sistemas alimentares em cada época. Note-se que eu utilizei o plural, caracterizando, portanto, a possibilidade de coexistência de mais de um sistema alimentar existindo concomitantemente. A proposta dos regimes alimentares se firmou justamente por dar um sentido orgânico e generalizante que a estrutura vigente anteriormente de análise de “tipos de agricultura” patrocinada sobretudo por Ploeg (PLOEG, 1994) que concentrava seus estudos na imensa variabilidade das forma de produção agrícola e dificultava uma visão sistêmica de conjunto e, mais que isso, fica concretada sobretudo na esfera da produção, limitando assim o alcance da análise.

Na busca de superar essa limitação e após as proposições de Friedmann e McMichael, Ploeg ordena sua compreensão do sistema alimentar através da noção de império que seria uma “estrutura composta por esquemas reguladores de natureza política e econômica que são impostos à sociedade e à natureza” (PLOEG, 2008, p. 279) e seria constituído na forma de rede colocando processos, lugares, pessoas e produtos em relação.

Com base nessa noção Ploeg defende a caracterização do período pós década de 1990 como “Regime Alimentar Imperial” em que as formas de regulação se estabelecem através dos interesses das grandes corporações do agronegócio em estreita sintonia com os aparelhos estatais. Não haveria uma base territorial específica nesse regime pois ele se constituiria de forma descentralizada, controlando “progressivamente a produção, circulação e consumo de alimentos na escala mundial” (PLOEG, 2008, p. 281). Note-se que Ploeg traz uma proposta partindo do mesmo fundamento de McMichael, inclusive com a fundamentação na teoria da regulação e ao final, as características do regime alimentar atual apresentam muitas similaridades, seja no conceito de “Regime Corporativo” ou no de “Regime Imperial”.

Niederle, entretanto questiona a base da escola da regulação em sua proposta de “ordem alimentar” argumentando que o seu “arcabouço analítico apresenta dificuldades para abordar as ligações entre as mudanças institucionais em larga escala e os comportamentos individuais e coletivos dos atores sociais” (NIERDELE e WESZ JUNIOR, 2018, p. 53). Nessa vertente de análise procura-se identificar a diversidade que coexiste com a homegeinização da alimentação, ao mesmo tem em que se advoga uma maior importância para a esfera do consumo alimentar, tida então como um momento significativo do processo e não teria sido valorizado pela noção de regime alimentar. Entretanto, na obra em foco, após a parte introdutória, a proposta de análise dos sistemas alimentares no Brasil se desdobra nas ordens alimentares “industrial, comercial, domestica, estética, cívica e financeira” (idem, p. 72) nas quais a vinculação ao conceito de ordem se perde e que se configura como uma estrutura que poderia ser perfeitamente desenvolvida sob a égide do conceito de regime alimentar.

O HLPE (High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition of the Committee on World Food Security ‘CFS’) caracterizou os sistemas alimentares como a reunião de “todos os elementos (ambiente, pessoas, insumos, processos, infraestruturas, instituições, etc.) e atividades relacionadas à produção, processamento, distribuição, preparação e consumo de alimentos, e os resultados dessas atividades, incluindo resultados socioeconômicos e ambientais” (HLPE, 2014, p. 29). Ou seja, enumeram-se várias fases e processos inseridos nos sistemas, entretanto Maluf adverte que “os sistemas alimentares são mais do que a mera agregação de um conjunto de atividades interligadas (...) envolvendo interdependências, complementaridades e conflitos entre os componentes dos sistemas” (MALUF, 2021, p. 5).

Portanto, não se trata apenas de segmentar a análise em cada um de seus componentes mas desvendar sua cadeia de determinações e isso só pode ser feito se atentarmos para a articulação das escalas de análise, particularmente a que podemos derivar da proposta de Lacoste, que aborda a noção de escala derivada de sua abrangência territorial, considerando que a alternância de escala implica em alteração dos instrumentos conceituais de análise e a sua inter-relação deveria ser organizada para que não se comparem elementos muito grandes com os muito pequenos, procedendo "como se o espaço terrestre fosse por assim dizer ‘folheado’ (LACOSTE, 1988a). Iles e De Wit concretizam essa enriquecem essa proposição de Lacoste com a noção de escala relacional, que seria a “relação espacial e temporal entre os processos em diferentes níveis, bem como os processos que conectam os elementos entre os níveis” (ILES e DE WIT, 2015, p. 486), ou seja, ao invés de fixar a análise em um único nível hierárquico, a abordagem integrativa dos diversos níveis em rede permitiria uma análise mais adequada da complexidade dos fenômenos analisados, afinal, a dinâmica que influencia ou determina a estrutura e funcionamento de um fenômeno em uma localidade específica, na maior parte das vezes não consegue ser explicada pelos elementos unicamente presentes fisicamente no local.

A estrutura proposta pelo HLPE apresenta potencialidade como estrutura de análise na medida em que não se vincula explicitamente com uma corrente de pensamento socioeconômico, mas corre o risco de escorregar para o empirismo lógico se não a enquadrarmos numa estrutura lógica como propõem Maluf, complementado por Lacoste e Iles e De WIT.

 

 

Bibliografia

FRIEDMANN, H. From colonialism to green capitalism: Social movements and emergence of food. New Directions in the Sociology of Global Development, Amsterdan, v. 227, n. 84, 2005.

FRIEDMANN, H.; MCMICHAEL, P. Agriculture and State System. The rise and decline of national agricultures from 1870 to the present. Sociologia Ruralis, v. 29, n. 2, 1989.

HLPE. Food losses and waste in the context of sustainable food systems. Roma: FAO, 2014. A report by the High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition of the Committee on World Food Securi.

ILES, A.; DE WIT, M. M. Sovereignty at What Scale? An Inquiry into Multiple Dimensions of Food Sovereignty. Globalizations, v. 12, n. 4, 2015.

LACOSTE, Y. Os objetos geográficos. Seleção de Textos, São Paulo, 1988a. Disponivel em: <https://www.pucsp.br/~diamantino/OBJETOS.htm>.

MALASSIS, L. Alimentar os homens. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.

MALUF, R. S. Decentralized food systems and eating in localities: a multi-scale approach. Revista de Economia e Sociologia Rural, v. 59, n. 4, 2021.

MCMICHAEL, P. Global Development and The Corporate Food Regime. New Directions in the Sociology of Global Development, v. 11, 2005.

NIERDELE, P. A.; WESZ JUNIOR, V. J. As novas ordens alimentares. Porto Alegre: UFRGS, 2018.

PLOEG, J. D. Styles of Farming: an introductory note on concepts and methodology. In: PLOEG, J. D.; LONG, A. Born from within: practice and perspectives of endogenous rural development. Assen: Van Gorcum, 1994.

PLOEG, J. D. Camponeses e impérios alimentäres - lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre: UFRGS, 2008.

RASTOIN, J. L. Les systèmes alimentaires territorialisés: quelle contribution à la sécurité alimentaire ? Introduction. [S.l.]: Académie d'Agriculture de France, 2014.

RASTOIN, J. L.; GHERSI, G. Le système alimentaire mondial. Concepts et méthodes, analyses et dynamiques. Versailles: Éditions Quæ, 2010.

WALLERSTEIN, I. Análise dos sistemas mundais. In: GUIDDENS, A.; TURNER, J. Teoria social hoje. São Paulo: UNESP, 1999.



[1] Segundo essa Escola, o sistema capitalista apresentaria em suas diferentes fases e épocas um modo de acumulação, definido em forma de sistemas e estruturas, e um modo de regulação onde predominaria o papel do Estado na negociação dos conflitos, mas que também poderia incluir um papel da ação social.